Ação civil pública envolvendo os portadores da Hepatite “C”

Existem casos e casos. Julguei um processo sobre os portadores das Hepatite “C” envolvendo a política pública sobre a matéria. Nesta sentença, tive a oportunidade de expor a minha visão sobre o direito a saúde. Na minha opinião, a jurisprudência não alcançou um meio termo necessário. Com efeito, a saúde pública no país está muito longe de alcançar o patamar constitucional, mas a Justiça, frente a qualquer problema de saúde, vem deferindo qualquer tratamento sem efetivamente estabelecer limites. Nenhum juiz quer assumir o risco de o paciente morrer em razão do indeferimento da liminar, mas acredito que o direito à saúde não tem a extensão tão lata, de modo a assegurar qualquer prestação. Salvo melhor juízo, o Brasil não é obrigado a realizar tratamento exterior quando existe terapia no Brasil ou pagar tratamento experimental.

Voltando a questão, o caso que examinei trouxe algumas dificuldades. Existe um protocolo científico para o tratamento dos portadores de hepatite “C”, estabelecendo um limite temporal e vedando o retratamento. A ação civil pública proposta pelo MPF visava afastar as restrições com base no direito fundamental à saúde sem trazer qualquer dado científico. A minha antecessora e eu tivemos o cuidado de ouvir especialistas na área. Para a minha surpresa, verifiquei que o protocolo não era um ato arbitrário para limitar o atendimento, mas para racionalizar os recursos disponíveis. A hepatite “C” possui uma especificidade e o tratamento não é 100% eficaz. Ao analisar a questão, rejeitei todos os fundamentos do MPF para anular o Protocolo Científico. Fiquei uma situação difícil porque a consequência seria julgar improcedente o pedido, mas consegui uma saída, conforme trecho abaixo:

A primeira vista, afastados ambos os fundamentos utilizados pelo autor em sua petição inicial, impor-se-ia, no juízo ortodoxo, a improcedência do pedido, contudo não me parece ser esta a melhor solução em razão dos subsídios produzidos nesta demanda. Se não é possível dispensar um protocolo científico pelas razões já expostas, nada impede que, mantendo-se o ato, se faça uma análise individual de suas disposições a fim de aferir a violação ou não ao direito à saúde. Não há que se falar em nulidade da sentença por vício extra petita ou violação ao princípio do contraditório. Quanto ao 1º aspecto, verifica-se que, embora não se refira textualmente em sua inicial, o MPF questionou a validade do Protocolo Científico como um todo por entender contrário ao direito à saúde, de modo que se compreende na causa de pedir e no pedido a eventual anulação individual de suas disposições. Assim, não se está diante do vício extra petita quando o juiz defere menos do que pedido pela parte autora, enquanto decorrência lógica. Em relação ao 2º ponto, durante a instrução, as partes tiveram ampla oportunidade de debater sobre os elementos de prova, inclusive quanto à possibilidade de criação de uma Câmara Técnica, de maneira que não há surpresa.

Com base na fundamentação acima, analisei individualmente as disposições do Protocolo Cientifico, de maneira a afastra eventuais disposições lesivas ao direito fundamental.

Na época (nota abaixo transcrita), publicou-se uma nota no site da Justiça Federal de Sergipe, inclusive com cópia da sentença. Recentemente, o TRF da 5ª  Região negou provimento aos recursos, mantendo a sentença. Ainda não houve o trânsito em julgado.

1ª Vara Federal de Sergipe decide ação civil pública sobre os portadores da Hepatite C 

 O juiz federal substituto da 1ª Vara da Seção Judiciária de Sergipe, Fábio Cordeiro de Lima, acatou parcialmente os pedidos formulados através de ação civil movida pelo Ministério Público Federal (MPF), referente ao tratamento para portadores de Hepatite C. A ação pretendia, entre outros itens, garantir o fornecimento de medicamentos a todos os portadores de Hepatite C, além do tratamento, ou retratamento, independente do período de tempo ou grau da enfermidade, fatores estes levados em consideração pelo Município de Aracaju para tomar para si a responsabilidade do tratamento. Até então, o município garantia o tratamento somente para portadores com certo nível da doença, e determinava um limite de tempo de internação, o que foi revisto pelo juiz.

Dessa forma, quanto à pretensão de inclusão de todos os medicamentos necessários, o magistrado rejeitou o pleito, justificando: que o Protocolo Clínico e Diretrizes Terapêuticas para o tratamento da Hepatite Viral Crônica “C”, que regulamenta procedimentos nesse sentido, é um expediente legítimo previsto em lei; que a sentença sem referência a um medicamento ou insumo específico constituiria uma decisão normativa por depender necessariamente de complementação de um órgão, o que desnaturaria a função jurisdicional, que é de aplicar o direito ao caso concreto; e que os remédios experimentais não estão protegidos pelo direito à saúde. No tocante ao tratamento, o juiz entendeu que a questão consiste em, independente do período de internação, verificar se a medida, ainda que não traga a cura, traz algum benefício terapêutico ao paciente.

O magistrado suspendeu a parte do referido Protocolo que permitia a suspensão do tratamento na 12ª semana, quando alegou que a chance de cura, ainda que pequena, não pode ser fator determinante para a sua interrupção. O juiz também rejeitou o procedimento de terapia de manutenção, na qual se aplica uma dose mais baixa sem a pretensão de negativar o vírus, por não encontrar, nesse procedimento, evidência científica que comprovasse beneficiamento da população.  “É da tragédia do ser humano que não existe a cura para todos os males que afligem as pessoas e que os mesmos busquem esgotar todas as possibilidades. Vedar peremptoriamente o tratamento como se tivesse uma única chance parece ser drástico para não dizer trágico.”, relatou o juiz.

Fábio Cordeiro Lima afirmou que o ideal seria que os casos não abordados pelo Protocolo fossem examinados por uma Câmara Técnica, capaz de avaliar a necessidade do tratamento fora dos parâmetros relacionados no referido documento, tratando individualmente cada situação. Contudo, o juiz impôs algumas condições ao seu funcionamento, relatando que “a preocupação deste Juízo é estabelecer pautas mínimas de natureza procedimental a fim de conciliar os interesses em jogo, sem prejuízo de outras exigências que venham a ser criadas (observado, sempre, a sua razoabilidade)”.

Link da sentença: http://www.jfse.jus.br/noticiasbusca/noticias_2009/julho/decisao_hepatite.pdf
Link do acordão: http://www.trf5.jus.br/archive/2010/09/200785000006104_20100906_3412284.pdf

Sobre FCL

Sou juiz federal da Seção Judiciária de Sergipe. Trabalhei como: 1) Juiz Substituto da 1ª Vara/SE ao da lado da Juíza Federal Telma Maria Santos Machado - no período de 06.2008 a 12.2012 2) Juiz Federal da 6ª Vara/SE - Subseção Judiciária de Itabaiana no ano de 2013. Atualmente, estou como titular da 2ª Relatoria da Turma Recursal de Sergipe. Eventuais perguntas deverão versar sobre esclarecimentos acerca dos fundamentos da decisão. Não responderei a casos concretos.
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